Mas há também referências a líderes negros e a marcos abolicionistas. Duas placas, na ala esquerda e na ala direita do saguão, exibem o nome de José do Patrocínio. Uma que o nomeia como "tigre abolicionista" e a outra como "proclamador civil da República".
Em outra parte do saguão, uma pintura do artista negro Pedro José Pinto Peres representa a primeira emancipação dos escravizados feita pela Câmara Municipal em 29 de julho de 1885, quando são concedidas cartas de alforria.
No contexto da época, é preciso ter cuidado ao ver essas referências como provas de uma mentalidade progressista e inclusiva em relação à população negra.
"Importante destacar que o palácio foi inaugurado para reforçar a tradição da elite dominante. Quando a gente remete a 1923, é um contexto de crise política. O Brasil estava em estado de sítio no governo de Arthur Bernardes. Havia conflitos entre as oligarquias paulistas e mineiras. Então, essas obras são usadas estrategicamente para enfatizar marcos do poder republicano. Essa leitura da presença negra é atual, porque responde a uma demanda do nosso tempo. É absurdo que, ao entrar no saguão, vejamos tantas representações negras, mas isso não esteja presente na própria representatividade do corpo legislativo e na forma de contar a história do legislativo carioca 100 anos depois", diz Douglas Liborio.
Em 1937, no contexto do Estado Novo, o governo ditatorial de Getúlio Vargas interdita o Pedro Ernesto. Em 1946, no processo de redemocratização, foram convocadas eleições para a Câmara dos Vereadores, que manteve os trabalhos até 1960. Nesse período, por conta da criação do estado da Guanabara, o prédio passou a sediar a Assembleia Legislativa.
No entanto, uma outra mudança importante aconteceu nesse intervalo, em 1951, com a mudança do nome do edifício para Palácio Pedro Ernesto. Uma homenagem ao médico e ex-prefeito da cidade. Ele ocupou o cargo entre 1931 e 1934, como interventor, e depois de 1935 a 1936, eleito indiretamente pela Câmara Municipal.
"O Palácio Pedro Ernesto ganha esse nome como expressão da luta pela autonomia e pela democracia na cidade. Foi o primeiro prefeito eleito e depois cassado. Então, é uma referência que expressa a história de conflitos políticos naquele local. E isso acontece no fim da ditadura do Estado Novo. O que, de certo modo, revê o estigma de ser a Gaiola de Ouro. É uma era de afirmação política e simbólica do legislativo no Rio de Janeiro, que seria amputada mais uma vez pelos acontecimentos políticos das décadas seguintes", explica Paulo Knauss.
No período da ditadura militar, o Palácio Pedro Ernesto foi palco de manifestações políticas e acontecimentos históricos importantes. No dia 28 de março de 1968, depois de um protesto de estudantes secundaristas no restaurante Calabouço, no centro do Rio, policiais militares atiraram contra um grupo e mataram Edson Luís Lima Souto, de 18 anos.
O corpo foi levado para o Palácio Pedro Ernesto, que na época ainda era a sede da Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara. Lá, ele foi velado sobre uma mesa. O episódio atraiu uma multidão, que, no dia seguinte, acompanhou o corpo em cortejo até o cemitério.
"Os estudantes discutiram sobre o que fazer com o corpo. Havia insegurança e preocupação de que, se o corpo fosse entregue para instituições como o Instituto Médico Legal (IML), a ditadura poderia intervir e forjar a causa da morte. Então, a decisão ali [foi] de levar para um órgão público. No Palácio Pedro Ernesto, chegaram os médicos, aconteceu a autópsia na frente de alguns estudantes e o corpo acabou sendo velado. Eles tomaram essa decisão para dar visibilidade ao que havia acontecido. Imediatamente, a notícia se espalhou, as pessoas começaram a chegar na porta do palácio e o corpo ficou bastante exposto. Essa é uma das imagens mais marcantes da ditadura. Infelizmente, não há nenhuma memória dentro do palácio sobre o velório do Edson Luís", diz a historiadora Samantha Quadrat.
Anos mais tarde, atentados à bomba se tornaram estratégias comuns para desestabilizar a transição democrática. Bancas de jornais da imprensa alternativa, o prédio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 1976, e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1980, foram alguns dos alvos.
No mesmo dia do atentado contra a OAB - 27 de agosto de 1980 - uma outra bomba explodiu no gabinete do vereador Antônio Carlos de Carvalho, no Palácio Pedro Ernesto. Ele havia integrado o MR-8, foi preso em Ibiúna, no estado de São Paulo, e no Destacamento de Operação Informações (DOI) e aos Centros de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do Rio de Janeiro, onde foi torturado. No atentado, o vereador e quatro funcionários ficaram feridos. O salão nobre da Câmara Municipal foi batizado com o nome de Antônio Carlos de Carvalho. Uma placa o homenageia, mas não há referências ao atentado ocorrido no prédio.
Com a fusão do Estado da Guanabara e o Estado do Rio em 1975, foi retomada a organização do poder legislativo carioca. Em 1977, o Palácio Pedro Ernesto volta a ser a sede da Câmara dos Vereadores. Nos tempos mais recentes, merece destaque o dia 15 de março de 2018. Uma multidão se concentrou nas escadarias do palácio e na Praça Cinelândia para o velório da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
Palácio Pedro Ernesto integra a história do Rio de Janeiro Foto - Fernando Frazão/Agência BrasilA cerimônia no interior do prédio foi reservada para familiares e amigos. Os dois haviam sido assassinados na noite anterior, quando voltavam de carro de um evento no centro da cidade. Crime que ainda aguarda um desfecho.
Enquanto dois dos assassinos foram identificados e presos, até hoje não se sabe os motivos, nem os mandantes do crime. Apesar do tempo curto de mandato (13 meses), Marielle teve participação ativa na Câmara de Vereadores e apresentou pelo menos 118 proposições sobre direitos humanos, cidadania, saúde, educação e direitos das mulheres.
Mesmo com exemplos de parlamentares e de manifestações que lutam por uma sociedade mais igual e diversa, ainda há símbolos e práticas relacionadas à Câmara Municipal que remetem aos tempos de exclusão e elitismo. O aniversário de 100 anos pode ser uma oportunidade para fazer do Palácio Pedro Ernesto cada vez mais a Casa do Povo.
"É uma palácio que tem uma história muito conservadora. Até hoje, existe uma sala onde os vereadores se reúnem e, dentro dela, o banheiro é exclusivamente para os homens. As mulheres precisam sair da sala e ir em um banheiro que fica do lado de fora. Os quadros também são muito conservadores. Esse movimento de repensar a história brasileira e torná-la mais democrática ainda não chegou plenamente naquela casa. Torço para que os vereadores mais progressistas tenham a preocupação de repensar a história contada ali através dos quadros, memoriais, placas e referências nas visitas guiadas. É uma preocupação que a gente aqui no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo deveria ter", defende a historiadora Samantha Quadrat.
Fonte: Agência Brasil